Papo com Jeff Lemire, o autor de Condado de Essex: “O local e a cultura em que nascemos está intensamente marcada em cada um de nós”

As 512 páginas em preto e branco de Condado de Essex chegam ao Brasil quase 10 anos após o lançamento do primeiro dos três livros que compõem o álbum de Jeff Lemire. Transformado em um dos capítulos da versão completa publicada em português, Contos da Fazenda chegou às lojas especializadas da América do Norte em 2008. Os dois livros seguintes, que fecham a trilogia e o completam a publicação da Mino, saíram até 2009. Desde então, Lemire se tornou um dos grandes nomes do mercado norte-americano de quadrinhos. Seu principal feito está em conciliar seus trabalhos autorais com obras mais comerciais produzidas para gigantes como Marvel e DC Comics sem jamais perder seu estilo pessoal.

“Eu soube desde cedo que não conseguia desenhar nada em um estilo foto-realístico e que a minha força como artista estava na minha habilidade de expressar emoções e sensações”, resume o quadrinista em relação ao ponto forte de seu trabalho. Tanto em O Soldador Subaquático quanto em Sweet Tooth, o principal mérito de Lemire está exatamente em sua capacidade de expor os sentimentos de seus personagens. Em Condado de Essex isso é explicitado na construção de personagens como o jovem Lester e os demais moradores da região, como Lou LeBeuf, Anne Quenneville e o tio Ken em tramas sobre memória, luto e família.

Bati um papo com Lemire sobre as origens de Condado de Essex e também falamos sobre a relação das pessoas com os locais em que foram criadas, o peso do escapismo nas HQs de super-heróis, o desenvolvimento do filme de O Soldador Subaquático e as mudanças no traço e no estilo de quadrinho dele ao longo dos anos. Papo massa. Ó:

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Condado de Essex chega ao Brasil quase 10 anos após a publicação do primeiro capítulo da série. A obra trata de um garoto de uma cidade fria do Canadá e também sobre hóquei. O livro não poderia ser mais distante da realidade brasileira, mas mesmo assim saiu em português. Enquanto você produzia a HQ chegou a pensar em como essa história poderia ser universal?

Eu não fazia ideia! Eu nem mesmo imaginava que chegaria a ser publicado em inglês. Honestamente, era um momento em que eu fazia quadrinhos apenas para mim. Eu estava buscando a minha voz como quadrinista naquela época. Às vezes eu penso que quanto mais específica for uma história mais universal ela pode se tornar. E essa era uma história muito específica sobre o lugar no qual eu cresci. Ao mesmo tempo, é óbvio, fico muito emocionado com o sucesso de Condado de Essex e como pessoas do mundo todo estão tendo a oportunidade de ler o quadrinho.

Ainda sobre as origens do livro, você se lembra do momento em que teve a ideia de contar essa história?

Antes de fazer o Condado eu passei quase cinco anos fazendo todos os tipo diferentes de quadrinhos, muitos deles não eram muito bons. Eu estava apenas tentandovários tipos de estilos e histórias, tentando experimentar e me encontrar como um autor.

Em algum momento eu dei um passo atrás e decidi que precisava ser mais honesto e sincero e eu precisava contar uma história. Nessa época eu já estava morando na cidade, em Toronto, por mais ou menos uma década e já conseguia olhar para o local em que cresci com certa perspectiva e aí a história começou a surgir para mim.

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Condado de Essex trata das memórias de um lugar e como as histórias desse local podem influenciar todos os seus habitantes. Você vê muito impacto dos lugares em que vivemos na definição de quem somos?

Eu acredito que eles sejam incrivelmente importantes. O local e a cultura em que nascemos está intensamente marcada em cada um de nós, mesmo que nós nos mudemos e passemos a morar em outros locais eu acredito que o local em que vivemos os nossos primeiros anos e a juventude tem um impacto imenso.

Um dos focos do livro está na relação dos personagens com hóquei. Imagino que o esporte tenha para vocês, canadenses, uma relação parecida com a nossa com o futebol. Qual importância do hóquei na sua vida? Há algum significado mais profundo nessa relação entre canadenses e hóquei no livro que talvez só seja compreensível para vocês?

Eu acho que essa é uma ótima comparação entre hóquei e futebol. É um esporte que tem um peso imenso na nossa cultura aqui. Eu cresci jogando hóquei, comecei quando tinha uns sete anos. Na verdade ainda jogo. A história do esporte era algo que me interessava muito quando escrevi o Condado de Essex. Me pareceu um ótima ideia criar um paralelo entre a história do lugar com a história do esporte e com as diferentes “famílias” que possuímos… Parentes de sangue e companheiros de equipe.

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Outro tópico importante no livro é a relação entre os personagens com super-heróis. Não quadrinhos, mas super-heróis, um conceito muito ligado à cultura norte-americana. Super-heróis foram muito importantes na sua infância?

Eles forma extremamente importantes para mim. Eles eram o meu escape e a coisa que mantinha a minha imaginação ativa quando criança. Eu cresci desenhando quadrinhos de super-heróis e copiando as ilustrações que mais gostava deles. O quadrinho que o Lester desenha em Condado de Essex era um dos meus desenhos feitos durante a infância. Eu ainda amo super-heróis e gosto de explorar diferentes aspectos deles nos meus trabalhos recentes para a Marvel e para a DC e também na minha série, Black Hammer.

Tanto em O Condado de Essex quanto em Sweet Tooth as histórias são apresentadas na maior parte do tempo a partir de perspectivas infantis. É interessante pra você colocar crianças como protagonistas?

Eu amo escrever personagens que sejam crianças. Eu acho as vozes delas muito fáceis de serem encontradas. E amo a imaginação farta que elas possuem. Eu também acho que as crianças sentem tudo de forma muito mais intensa que os adultos. Tudo tem um peso maior e mais importante quando você é criança. Eu amo investir nessas sensações de encantamento, inocência e mistério.

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O seu traço é muito particular e característico. Você vê muita mudança nele desde o lançamento de Condado de Essex? Aliás, você acha que tem um estilo de desenho? Se sim, como o define?

O meu estilo é muito particular. Eu soube desde cedo que não conseguia desenhar nada em um estilo foto-realístico e que a minha força como artista estava na minha habilidade de expressar emoções e sensações ao invés de realismo. Então eu aceitei e abracei essa ideia. Eu acho que o meu estilo evoluiu muito desde Condado de Essex. Hoje eu estou colorindo todas as minhas artes, dando um aspecto ainda mais orgânico ao meu trabalho.

É difícil para você adaptar o seu estilo entre seus trabalhos mais autorais e obras para editoras mais comerciais como Marvel e DC?

Quando eu comecei a escrever para outros artista eu lutei muito para levar o meu próprio estilo para esses trabalhos porque os meus desenhos e o meu estilo de ilustração tinham um peso grande no que eu fazia. Mas com o passar dos anos eu fui ficando cada vez melhor em me colocar no trabalho de outras formas. É claro, os trabalhos em que desenho serão sempre mais pessoais do que aqueles em que não desenho. Eu apenas entrego mais de mim quando desenho. Mas também tenho melhorado em me colocar em outros trabalhos.

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Como anda a adaptação de O Soldador Subaquático para o cinema? O roteiro já está pronto? Há algum cronograma da produção?

Não há muita coisa para contar. Hollywood tem um ritmo muito lento quando comparada com os quadrinhos. Tudo o que posso dizer a esse ponto é que o Ryan Gosling e seus sócios da Waypoint Entertainment compraram os direitos do livro e estão trabalho no desenvolvimento da adaptação.

Você está trabalhando em algum livro novo no momento? Você pode falar um pouco sobre ele?

No momento eu estou escrevendo e desenhando uma série chamada Royal City. Praticamente uma continuação de Condado de Essex em muitos aspectos. Trata de família, luto e memória.

Você pode recomendar alguma coisa que esteja lendo, ouvindo ou assistindo no momento?

No momento eu estou obcecado com os livros do Haruki Murakami e com a mais recente temporada de Twin Peaks!

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